A história se passa num contexto rural de uma vida bucólica,
em seu pequeno mundo encantado, com um misto de realidade e alternando situações
e acontecimentos abstratos, e uma
parte de vida urbana, entre suas memórias escolares.
Ficam aqui minhas desculpas, sempre que a ternura sobrepor a realidade, quando o abstrato se confundir com um mundo irreal, quando a puerilidade se confundir com um mundo encantado, demasiadamente infantil. Mas são visões de um mundo, talvez, ainda de descobertas, mas que se intercala com a realidade cotidiana.
A Velha Casa Personagens Inesquecíveis
Patinho Amarelo Banho Quente
Estripulias de
Menino
O Velho Pé de Ficus
Folhas Recortadas Personagens de um Cenário Urbano
Mundo Mágico Sementes ao Vento
Dias de Correria Pedra Sobre Pedra
Casa Grande Memórias Escolares
Tempos de Chuva
Personagens
Distintos
A Velha Casa
A velha casa, da Fazenda Gameleira, cuja data em que seu pai a restaurou para morar com sua mãe, está gravada
num cantinho da calçada da varanda.
Era uma casa grande, com cinco quartos, duas cozinhas, uma despensa de chão batido, duas salas e uma varanda. Pendurados na parede, como testemunhas de toda uma história de vida, os quadros com as fotos de sua família, em formato de elipse.
Cuidadosamente trabalhada em detalhes: Os homens de terno e gravata, e as mulheres com todos os adereços, editadas e pintadas, num tempo ainda sem os recursos do “fotoshop”, com o filho mais velho no centro, os pais acima, e o menino de dez anos na parte de baixo, formando o círculo da grande família. Ao lado ficava o quadro com a foto de seus avós, e no canto em cima de uma cantoneira, o velho lampião a querosene, que somente era aceso em ocasiões especiais.
Uma delas, era em algumas das noites do mês de janeiro, quando de repente na madrugada, eram todos despertados pelas batidas graves dos tambores, e os assovios das flautas dos foliões de reis. Às vezes passavam até três folias distintas, com suas cantigas entoadas com melodias religiosas. Noutra parede, ficava o cabideiro de pendurar os chapéus: um panamá, para usar em ocasiões especiais, e outros mais velhos. O velho chicote de cabo trançado, com uma argola entremeada no final do cabo.
Ao atravessar a porta que dava para a sala de jantar,
ficava pendurado acima, na parede,
o incansável e fiel senhor do tempo. Um relógio redondo de longos ponteiros, movidos por uma pilha grande, que durante muitos anos, marcou o tempo de
toda uma vida. Tempos em que os
ponteiros das horas, levavam uma eternidade para percorrer o grande círculo.
Nas noites em que o vento não assoviava nas bordas das
telhas, e sem a orquestra dos
grilos, e o cantar das corujas em cima da pedra –que um dia escorregou e
ficou derreada no lajedo em frente da casa– dava pra se ouvir o tic-tac de seus
longos ponteiros, que entrava pela noite adentro,
até o galo anunciar o raiar de mais um dia, com a
alvorada dos cardeais e João-de-barro, na mangueira nos fundos da casa, e não demora muito, o sol despontava
atrás da serra, iluminando mais um dia de aventuras, que não tinha
um roteiro pronto.
A sala de jantar era onde ficava o guarda-louça –uma cristaleira antiga, comprada quando seus pais se casaram– com as xícaras de colorex e todas as pratarias
e talheres que eram usados quando chegavam
visitas pra almoçar. Ao abrir dava pra sentir o inesquecível cheiro do sal de Andrews, que seu pai usava, do
leite de magnésio, das noz- moscadas,
guardadas em uma xícara, onde também ficava o dedal, que sua mãe usava para costurar e remendar as calças do marido.
Em cima ficava o fiel companheiro das
notícias, o rádio Philco de seis pilhas grandes,
que todas as noites, às dezenove horas, seu pai sentava ao lado, para ouvir a voz do Brasil.
O tremelicar da luz vermelha do candeeiro em cima do rádio, com seu clarear tímido, iluminando a parede mais próxima e deixando à meia luz as outras três, da grande sala de paredes brancas, com um filtro “São João” de três velas, em cima de uma cantoneira de três pernas, sempre com sua água fresca-gelada. O rádio era uma espécie de ponte, entre o mundo cotidiano e o mundo virtual, até então de sons, mas muito cheio de variedades. Às vezes, funcionava como “despertador”. Logo às cinco da manhã, todos eram acordados pela “latumia” do programa do Zé Bétio, mandando jogar água nos preguiçosos. Antes do almoço, era hora de ouvir o programa do Gil Gomes, com sua voz esticada, alongada, meio grave e incisiva, que gostava de prolongar as vogais, ao relatar casos policiais. Geralmente duravam mais de meia hora, como era na parte da manhã, os afazeres às vezes, não permitia que o menino soubesse o desfecho dos casos, o que lhe causava certa inquietude, pela frustração de não saber o final de determinada história.
À tarde as moças paravam para ouvir as radionovelas. Os
arranjos musicais e a voz dos protagonistas, eram mesclados por uma composição de sons dos mais variados. Um,
era a doce voz da moça do comercial da pomada para dor de ouvido (auris sedina):
–Se a criança acordoooou..., doooooorme..., doooooorme meniiiiiina!..., tudo calmo ficooooooou.... mamãe teeem auris- sediiiiinaaaa.
https://www.youtube.com/watch?v=aFwqQAePqf8
Outros, da natureza. O vento assoprando as folhas do pé de
manga ao fundo da casa, o som do
canto meio rouco e fora de hora, do galo dentro
da moita de bambú, com sua prole. As senhoras solteiras, sacolejando, tomando banho de terra, e outra pedrês, acolhendo
sob suas asas, seus curiosos
recém-saídos, das cascas, ainda de pluminhas
amarelas, experimentando algumas
folhas verdes, pra saber o que
pode e não se pode comer. Eles sem saber, tornando coadjuvantes da história.
Ainda tinha o canto –de
assopro de flauta– do anu de pés
pretos; em seu voo rasante do coqueiro e pousou no tamboril, que ficava próxima à caixa d’água, onde os
pacienciosos bois, bebiam água com um
bem-te-vi em seu lombo. Eles de cabeça baixa, matando sua sede, olhava por baixo, o joão-de-barro, que
sentou na beirada da caixa, assunta, bebe água, assunta
de novo e vai embora,
talvez pelo balançar do rabo de Bala Doce: cavalo
faceiro, inteiro, garanhão, – muito arriscado pra menino montar– que só se conseguia por-lhe o cabresto, depois de ter dado duas a três
voltas, nas duas hectares do mangueiro,
para só depois, aparar as clinas e limpar suas orelhas de cara branca, à sombra do pé de Ficus.
O outro cavalo: Garoto, era pacato, –cavalo manso de mulher andar– ficava
no outro mangueiro, senão, ficaria
com o pescoço em chagas,
pelas mordidas do seu desafeto, Bala Doce.
Os tizius e coleirinhas se equilibrando nos frágeis galhos de marmeladas, comendo suas sementes,
disputando espaço com os franguinhos; alguns de pescoço
pelado com suas cristas de adolescente já despontando, e arriscando a sua independência, andando de grupinhos de
seis, longe dos croques-croques de sua mãe pedrês.
Em épocas de chuva, o mangueiro ficava todo colorido com cores alaranjadas, contrastando com o verde do capim. Uma planta conhecida como cordão de frade, decorado com bolinhas verdes felpudas, feito a abajures decorados, rodeado de florzinhas alaranjadas e adocicadas cheias de néctar. Iguaria muito apreciada e disputadas pelos moleques –de pernas arranhadas pelo alto capim colonial– e pelos beija-flores que sobrevoam por sobre as plantas –como se fossem aviões coloridos, perfilados em demonstração de desfile cívico. Quando secas, se transformavam em brinquedos –formando um eixo perfeito de duas rodas de trator– que empurrados com um gancho, iam deixando rastros na terra seca, devido à sua superfície meio espinhosa.
Descendo a pisada do batente de uns vinte centímetros de
altura, chegava-se numa outra sala. Tinha o lavador de rosto com duas bacias e um jarro de esmalte branco, –utensílios obrigatórios de uma época. Tinha uma mesa grande que também era usada por sua mãe, pra cortar os panos, que depois eram costurados na inseparável máquina Singer, que quando não está sendo
usada e num descuido de sua mãe, os pequenos
a usavam pedalando
o pé que movia a roda,
imaginando ser uma bicicleta. Os cortes eram marcados com uma carretilha de costura, cujas marcas ficaram
vincadas na mesa, registrando
o ofício de uma época. Atrás da portinhola de madeira, que dava pra escada, ficava o ferro de passar roupa, quando as
brasas ficavam acanhadas, era usado o
fole para reacendê-las para que as calças
ficassem bem vincadas, porque no outro dia, seu pai tinha que ir até
a cidade.
Tinha um alpendre
onde os menores da casa, ficavam sentados,
aparando água da chuva nas biqueiras das telhas, de onde ficavam olhando
se os carcarás não estavam
arrancando os amendoins, plantados numa área logo abaixo do pé de abacate. Onde de vez em quando,
eram vistos saruês comendo seus frutos, ou escondidos, esperando a noite cair, pra atacar o
poleiro de galinha que sempre estava
cheio de frangos ou atacar o poleiro das galinhas de pinto. Na parede da cozinha sempre o imprescindível
jogo de porta talheres, e outro das
tampas, os panos da prateleira e o forro da mesa, sempre combinando as estampas,
costurados por sua mãe, assim que o anterior
ficasse desbotado e meio sem graça. O banco com
os potes de água fresca e o fogão de seis trempes
que se acendia somente à noite. E em
tempos de andu, rodeava-se quatro ou cinco em torno de uma peneira, juntamente com o pai, para
debulhar andu, e fazer a farofa com
manteiga de garrafa no almoço do dia seguinte. Lá numa área onde ficava o forno e o pilão de angico, que ora era usado para
pilar arroz, ora para tirar o corante
com o fino pó de farinha, ora para pilar café, que depois de torrado, era moído no pilão, cujo “cheirinho” bom de
café, cortinava por toda casa. Encostada no forno, a velha fornalha,
que era usada pra fazer os doces de leite, ou fritar os toucinhos dos porcos que eram abatidos, –que de tão gordo que ficavam, não aguentavam mais se levantar – ou fazer sabão em um grande tacho de cobre. E em tempos de
milho verde, esse tacho, ficava cheio de pamonhas
cozinhando, enquanto outras eram amarradas pelas muitas mulheres,
que se ajuntavam para fazer pamonha, que geralmente ocupava
o dia todo.
Quando era pra se fazer farinha, era usada da “casa da
roda” da casa do Sr. “Vei Miguel”. A
lida começava antes do sol despontar atrás da
Serra do Anastácio, que ao amanhecer, já estavam arrancadas, de seis a dez bruacas de mandiocas, que eram
trazidas para a casa da roda, onde
meia dúzia ou mais de mulheres, de sorrisos abertos com seus lenços estampados na cabeça, raspavam,
e rasgavam a garganta dando risadas.
O dia de labuta, só finalizava à noite com a torrada
de farinha, iluminada pelos candeeiros, regada de
boas risadas, café e também uma ou duas doses de “limpa garganta” da boa, –pra quem apreciava– pra
não quebrar o ritmo das conchadas, das pás feitas de cabaça. Os braços à essa hora, já pedem arrego, devido a dança
de jogar de mãos, pra direita e pra
esquerda e sempre jogando a farinha pra
cima, deixando os cabelos –que
teimavam em sair na beirada do lenço– já
embranquecidos, pelos tantos anos de labuta, mais brancos ainda.
A grande casa da gameleira, ficava a um pipoco de bomba de foguete, distante do pé da Serra do Anastácio. Até então, município de Águas Vermelhas/MG. Tinha a sua frente voltada para o por do sol, onde nas tardes ensolaradas da primavera e do verão, o sol clareava até à soleira da porta que dava para a sala. Tinha o telhado com três quedas d’água, e o lado direito inclinado em declive pro lado da serra, pra que as chuvas de dezembro, não desbarrancasse a parede caiada de branco, que às vezes de tão branca, ofuscava a visão de rolinhas, que frequentemente batiam e caiam na calçada de –pedras irregulares, rejuntadas de cimento– que eram logo abocanhadas pela gata marisca, que já ficava à espreita, adentrando-se pela moita de bambu. Desta moita, eram retiradas as varas dos anzóis pra pescar as piabas no rio da gameleira. O pé da calçada, era decorado com os resistentes pés de boa-noite, com suas flores brancas e vermelhas em forma de pequenas sombrinhas; onde de vez em quando, descuidados mangangás que vinham sobrevoar suas flores, subiam e adentravam pela janela do quarto da varanda, com seu piso de ladrilho branco. Na janela quando aberta, sempre ficava a tranca, inclinada em 45 graus, encravada entre os portais, mantendo sempre aberta com vista para a imponente Serra do Anastácio.
Um zumbido grave ao longe, que parecia de um pequeno avião,
que vinha se tornando mais intenso, mas era de um Mangangá,
que chamou a atenção de um
menino de 10 anos. Ele estava deitado, em seu
raro descanso do meio-dia, no catre trançado com tiras de couro e colchão
de paina, com o lençol “florado”, cuidadosamente assoprando as cinzas dos capins, para que não ficasse impresso o rastro de suas mãos no lençol, –
recentemente lavado por Laura, no lajedo
do rio nos fundos da casa de Dona Atiza. As cinzas dos capinzais que mesmo queimados ao longe, viajara ao
sabor dos ventos, entrara pelas
frestas das telhas e sutilmente, pousavam no lençol frio, do quarto de ladrilhos, com dois catres:
sendo um, usado por seu tio “Zé Gome”. Deitado num deles, estava a observar os feixes de luz que entravam por entre as frestas das telhas brancas,
criando uma cortina iluminada cheias de partículas subindo
e descendo como se fosse um holograma, criando um cenário de filme
de ficção. Este “pequeno avião”,
desviara a sua atenção e seus olhos agora, acompanhava-o em seu voo de zigue-zague, que logo passou
por uma porta –com seus largos batentes
pintados de tinta à óleo azul– e já estava na varanda de piso de cimento queimado com xadrez
vermelho, até sair pela janela da varanda.
Na gaveta da penteadeira do quarto de casal, além das
cartelas de drágeas e os comprimidos,
para quase todo tipo de mal-estar, estava também
o caderno de anotações. Era onde seu pai apontava, com sua caligrafia meio trêmula, os fornecimentos dos meeiros que eram acertados somente ao final do ano, com os
mantimentos em forma de moeda, colhidos por eles.
Após a morte de seu pai, em 21 de julho de 2010, estava ele olhando
a sua valise, que tantas vezes fora usada em suas viagens a negócios. Estava cheia de fotos
e documentos históricos.
Um deles de uma importância muito grande, onde ele se emocionou, ao verificar que era a caligrafia do seu pai. Pôs se a ler, era uma oração que imagina ele, teria sido a sua avó Dona Emília que pedira a seu pai Adenor, que escrevesse, e sempre levasse consigo para lhe trazer proteção. Datava de 30 de maio de 1951, seu pai então, com seus vinte e um anos de idade. Aí ele voltou no tempo tentando imaginar em que circunstâncias, ele escrevera aquela oração, se foi à luz de candeeiro ou sentado na calçada em uma tarde de domingo com a sua mãe Dona Emília recitando em forma de oração, para que Nossa Senhora protegesse seu filho em suas andanças.
A casa grande de Dona Emília com um grande quintal com seus pés de araçás, onde esse menino também brincava com seu inseparável amigo “Ilto”. Tinha um depósito velho, que ao adentrar, se sentia o cheirinho bom das bananas que sua avó punha pra amadurecer. Essa casa, foi cenário de uma travessura. Em uma tarde de domingo, seus pais o deixaram com sua avó, pra fazer uma viagem a um lugarejo chamado Berizal. E enquanto o som dos cascos dos cavalos, iam se esvaindo por entre a poeira meio avermelhada na ladeira que dava rumo a esse lugarejo, o menino já começava a se entristecer com saudades de sua casa. E num piscar de olhos, fora encontrado por um senhor moreno de nome “João Meia Noite”, montado em mula preta, já na ponte sobre o rio do Saco de Dentro. E indagado pelo cavaleiro, ele disse que estava indo embora. Mas o cavaleiro, vendo que o minúsculo menino estava perdido, puxou-o pelo braço sem precisar apear de sua mula, o pôs no cabeçote da sela, e o levou de volta para a sua avó, que já estava muito preocupada, procurando por ele. O cavaleiro entregou o menino, que antes de tomar um café com bolo de puba, havia ganhado umas palmadas, para nunca mais se aventurar sozinho por essas estradas.
Antes da casa de sua avó, morava o seu tio, Nenzinho Pereira. Era uma casa moderna, com seu piso vermelho –de cimento queimado, cuidadosamente encerado com cera colmeína1– Seu telhado, era coberto por telhas francesas, com um grande curral em frente à casa. Quase todas as tardes, ficava um “mar branco”, pelas dezenas de cabeças de gado –principalmente em épocas de visitas dos famosos compradores de gado. Cujo curral era todo construído de pranchas de aroeira, encravadas em mourões cuidadosamente serrados, com suas pontas em formato piramidal pintadas de branco –como se fosse torre de pequenas igrejinhas de cidades do interior– e as andorinhas completavam o cenário, com seu sobrevoo rasante, pousando nessas pequenas torres. Até a seringa de apartar os bezerros, era coberta por telhas francesas, com um grande tronco ao centro, sustentando toda a estrutura do telhado. Bom mesmo era à noite, quando a casa ficava toda iluminada pela claridade das luzes à gás, que se interligavam por um fino cano para cada cômodo, por onde o gás era canalizado. Para o menino era uma novidade, porque na sua casa não tinha esse tipo de iluminação.
1Cera pastosa que se vendia em uma pequena lata redonda de 450 gr., depois de passada no piso, tinha que se escovar com um “escovão” pra dar brilho.
Patinho Amarelo
Um curral que todos os dias à tarde ficava cheio de vacas brancas. Num certo dia, se transformara num estacionamento, de carros coloridos: pick-up, jeeps, fusquinha e brasílias. Os cavalos eram amarrados perfilados nos moirões da cerca do mangueiro. Em sua maioria, as mulheres vinham à pé com uma das mãos segurando suas sombrinhas coloridas, e na outra, um feixe de flores que às vezes já chegavam meio murchas, devido o balançar de braços, desviando dos galhos de vegetação que caíam sobre os velhos carreiros por onde se cortava o caminho pra diminuir a distância.
Colorido também, era o patinho bordado, na jardineira azul do menino, que o tempo desbotou, mas não se apagou da memória – patinho amarelo tal qual os ipês que floresciam no mês de agosto, no boqueirão que se estendia acima, no sentido do lado direito da casa. Assentado na calçada vendo todo aquele entra e sai, sem entender talvez pela sua tenra idade –que não chegava a cinco anos ainda– porque sua avó paterna “Dona Emília”, estava deitada na varanda da casa do seu Tio Nenzinho, toda enfeitada de flores.
Já noutro entra e sai desse, –ele já com seus quase seis anos– foi no velório do seu Avô Materno, “Neco Gomes”. Após uma longa noite de velório, no dia seguinte, o cortejo seguiu na pick-up de seu pai, numa tarde chuvosa de 04 de janeiro de 1974, para ser sepultado no lugarejo chamado Curral de Dentro. Após a saída, ficou-se um início de noite triste, acinzentado, onde uma mulher meio baixa e de sorriso fácil, ficou com os pequenos da casa até seus pais voltarem do sepulto –só se soube bem depois, que essa mulher era sua irmã por parte de pai, casada com o vaqueiro “Geraldo Vaqueiro”.
Desse dia se lembra ainda, dum misto de cheiro de vela queimando, cheiro de flores e um cheiro de café que sua tia Joana estava desempacotando no terreiro logo após o “depós”. Era um cheiro diferente, porque era a primeira vez que ele via café industrializado e que já vinha moído e empacotado. Não se sabe o porque de se ter comprado café, visto que tinha uma chácara de café no quintal da casa.
Estripulias de Menino
Os carros de seu pai – o carro de boi e a pick-up – eram guardados em uma cobertura de esteios, ao lado do curral um pouco acima da casa, que também era usada para guardar a lenha. Em uma tarde de domingo, estava ele todo alegre, com sua camisa nova, atrás da pick-up, ansioso para mais um passeio, quando de repente, uma explosão, igual ao tiro de garrucha de dois canos. O pequeno menino fora atingido, desceu correndo e gritando, assentou-se na calçada com a camisa toda manchada de preto, sem entender o que havia acontecido. Algum outro moleque travesso, tinha introduzido um maxixe no escapamento do carro, e quando deu a partida, o fruto fora arremessado com toda força, e o atingiu. Depois desse episódio, ao ver um caminhão vindo soltando aquela fumaça preta, já procurava distanciar-se, com medo de ser alvejado novamente.
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2Cobertura de duas águas,
construída ao lado da casa de morada
pra se guardar carro-de-boi, e amarrar
cavalo pra esperar chuva passar.
O zigue-zague do cavalo desviando dos galhos de jurema, debruçados à beira do caminho, o sobe-e-desce das pedras, pisando em areias finas e secas, deixadas pelas enxurradas ao pé dos barrancos do carreiro, todo em degraus esculpidos pelas chuvas, e sobre a sela um cavaleiro; uma mão segurando o grande prato de comida apoiado em cima da cabeça da sela, outra afastando os galhos para alargar o caminho. A sela afrouxando cada vez mais, já alcançando a anca do cavalo pampa. E num estalo de dedo, o pequeno cavaleiro caiu de pé com o prato na mão. O cavalo que até então, vinha quase cochilando pensativo, agora assoprava, dava pinote em círculos. Desceu veloz ladeira abaixo quebrando a sela, rasgando sua pela grossa, de duas cores, nos espinhos de jurema, até chegar no curral. Após a deixada da encomenda que levara para os camaradas, estava descendo e ajuntando o que sobrou da sela, vinha vindo sua irmã mais nova; Ivanete, subindo o carreiro de cabelos esvoaçados, tremendo –igual leitão em chiqueiro de terra encharcado, nas manhãs frias de chuva de inverno– não conseguia nem falar, com pensamentos ruins sobre o que poderia ter acontecido com o seu irmão. Mas logo seu coração sossegou, e o sangue circulou novamente nas bochechas branco-gelo, da mocinha assustada, ao ver o pequeno cavaleiro, sem nenhum arranhão –além dos costumeiros nas canelas– também assustado, mas pelos arreios do cavalo que estavam aos farrapos e teria que dar contas ao seu pai.
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Uma caixa de fósforos em cima do batente vermelho de cimento queimado, do fogão à lenha. A tarde já se anunciava, mas o chaminé ainda estava morno do almoço daquele dia de estalos, como se fosse fogos estourando, em festa junina. Um muro de adobe com telhas mal encaixadas, outras quebradas, outras um pedaço sobre o outro, mas nada difícil de pular, ainda mais prum moleque arteiro, acostumado a subir em altas mangueiras, e até umbuzeiro. O vento assoprava forte a folhagem densa-seca da moita de bananeiras, que ficava no grande quintal 3, –que mais se parecia uma fazenda– e num piscar de olhos, a caixa de fósforos logo já não mais estava ali no cantinho da chaminé. Logo já se ouvia os estalos fortes das folhas verdes entremeadas às secas queimando arduamente em grandes labaredas, fazendo grandes ondas de fumaça desenrolando céu acima, que assustavam não só as andorinhas sobrevoando ao redor, mas também ao menino de onze anos, que num pulo já se encontrava assentado num banco da praça. O roncar dos motores dos caminhões Chevrolet D604, ou dos Mercedes 1113 que subiam a rua, –carregados de tijolinhos brancos e areia– se tornava baixo em função do barulho das batidas do seu coração, que quase saltava peito afora, ao ver dali da praça, a grande cortina de fumaça que subia nos fundos de sua casa. Talvez tivesse rogado aos santos da Igreja Matriz ali ao lado, pra que o fogo cessasse. Depois de longa e aflita meia hora, retornou, ainda com as batidas desordenadas e olhar cabisbaixo, pisando em ovos, pra ver o chão preto ainda em fumaças com um umbuzeiro meio chamuscado pelas chamas. Não se soube a causa deste incêndio misterioso. Decerto tenha sido faíscas dos aviões monomotores que sobrevoavam baixo em descida para pousar no campo de avião; ou seria faísca saída da torre da empresa de telefonia, que ficava há uns 70, 80 metros.
3 Era o quintal do Sr. Izalino Miranda, era lugar pra se caçar rolinhas, figas, pardal e surrupiar diversas frutas. Fazia limite aos fundos com o quintal da casa da até então Rua Francisco Sá nº 419
4 Nessa época o movimento desses caminhões era intenso, visto que a cidade ainda estava se fazendo a partir da Rua Santa Luzia, e não era muito usual se usar blocos de cerâmica nas construções, principalmente em muros, diziam que os moleques furava todo o muro com pedradas de estilingue
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Um rapazinho assentado à sombra da calçada, cuidando da sua mais nova aquisição, viu outro, ao longe, descendo em disparada, a ladeira –de pedras soltas e cristalinas, lugar onde-se catava pedras pra estilingue– que vinha da casa do Sr. Tintino Bandeira. Era seu primo Ilton, que veio a passeio, de Taiobeiras à Fazenda Gameleira e foi até sua casa. Encontrou-o assentado na calçada, dando uma papa para uma meia dúzia de filhotes de periquito “jandainha”. Após se recobrar o fôlego da descida em disparada, ficou estatelado e disse que aqueles filhotes não escapariam por estarem muito miúdos e –ainda de bundinha de fora–, quase sem nenhuma pelagem. Feliz pela visita do primo, mas não escondendo o desapontamento, era quase um desencantamento, visto que sempre quis ter aqueles “passarozinhos verdes”, não criados em gaiolas, mas como animais de estimação. Ainda na tardinha, do mesmo dia, após a despedida de seu primo, amassou um barro pôs num saco, juntou os pequeninos despenados, a casa de João-de-Barro, que retirara d´uma umburana, uns dois dias antes, próximo de sua casa, amoitada entre pés de umbu, aroeira e alecrins. Corria um corregozinho d’água fria, minado ali mesmo, debaixo das pedras. Escalou a árvore de tronco grosso –que dava uma volta de abraço de menino–, com um saco de traia nas costas. Após fixá-la na mesma galha que havia retirado a casa dos filhotinhos assustados, desceu apanhou cuidadosamente a prole barulhenta, escalou novamente, e agasalhou-os em seu ninho. No outro dia foram encontrados caídos ao chão, na fria e úmida areia –à beira dum fio d’água fria que corria silencioso, mas que em épocas de chuva, rolava os umbus e até grandes pedras rio abaixo– talvez por ficarem inquietos, ou por seus pais não terem voltado para alimentá-los. Isso causou-lhe um profundo sentimento de culpa.
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A gasolina que fazia a pick-up andar, agora fazia o mundo girar pra ele, tudo porque tentou com uma mangueira, retirar um pouco de gasolina do tanque do carro. Mas como a mangueira não havia descido até o nível da gasolina, ficou no meio, e quando puxava com a mangueira na boca, se inalava aquela somente a evaporação, que logo o deixou meio tonto e por tentar umas três vezes, já saiu quase bêbado. Desceu a “ladeirinha” que dava pra “casa do carro”, passou pela cozinha –que já estava maior do que de costume– passou pela sala do lavatório de rosto, cujo espelho refletia seu rosto embaçado, desceu a escada que dava para o quintal, rodeou o banheiro e foi se sentar na calçada de pedras atrás da casa. Uma parede branca com cinco janelas, que passa girando; cinco lagartixas que passeia pela parede; uma moita de bambu que passa girando; a cerca do mangueiro que passa rodando; um pé de palma entremeado num pé de umbu passa rodando. Passa o galo que passa de novo; canta o João-de-barro; canta o cardeal; o vento que sopra; o céu que se torna meio cinza, –com grandes coelhos transformando-se em dragões. Passa o cachorro que passa de novo e passa de novo; o gato branco –que o chamavam de Zé Branco– a roçar em suas pernas, – que parece perceber que aquele menino não está passando bem. Vem seu pai, que gira com uma latinha de azeite na mão. Mas que finalmente, consegue lhe dá uma colher para que beba. Logo logo, a moita de bambu ficou parada, o cachorro deitado ao seu lado junto com o gato, que estava à espreita na única lagartixa, que antes de tomar a colher de azeite, eram cinco.
O Velho Pé de Ficus
Os descansos diários
de seu pai, após o almoço, eram sagrados.
Às vezes eram na velha espreguiçadeira que ficava ao lado da janela, que enquadrava, emoldurando a
antiga ladeira como pano de fundo.
Que outrora descia carros, agora somente desce cavaleiros ou pessoas a pé. E a primeira visão que se
tem da casa, ao descer por essa
ladeira, é a fumaça saindo do fogão de fora, que é aceso de manhã bem cedo e só se apaga à noite.
Via-se também, a copa do velho pé de Ficus, árvore que também era a anfitriã das
visitas que chegavam com o sol a
pino, e sentavam-se à sua sombra e geralmente
pediam um copo d’água. Costumeiramente eram trazidos dois, em uma espécie de bandeja, caso o primeiro
não desse pra saciar a sede, oferecia-se
o segundo. Como no dia em que uns homens com suas fardas marrons, –que lembrava
também dos uniformes
dos funcionários da antiga SUCAM– que pararam embaixo da sombra para descansarem. Estavam à procura de um
meliante que, dias atrás, sacara de
uma peixeira e matara um homem, lá na fazenda saco de dentro. O menino curioso, e meio receoso, fitava os olhos nas
armas dos homens de farda marrom, que
depois de tomarem água e também um
café, subiram a cerca, atravessaram o mangueiro, e continuaram sua busca rumo à Serra
do Anastácio.
Geralmente as prosas embaixo da velha árvore, prolongavam-se por um bom tempo, na brisa suave e perfumada exalada pelas sedosas e perfumadas flores brancas da espirradeira, planta que ficava à sombra do seu protetor maior. Às vezes o assunto era sobre sociedade de gado, outra hora o acerto da manga que fora roçada, outra hora sobre a preparação da terra para plantar. Os assuntos eram os mais variados, causos e histórias contados por inúmeros visitantes, com um dialético regional de uma variação de expressão linguística muito peculiar, que muitas vezes, não era compreendido por um menino que ficava à espreita “assuntando” a conversa dos adultos. “ínhá7, pispiá8, ontonte9, isso num ostra não10”... expressões que só seriam compreendidos mais tarde, com o passar dos tempos. E essa interação só era quebrada entre um canto e outro, de um tico-tico, ou de uma rolinha sentados nos enormes pés de eucalipto, que ficavam à beira da cerca do mangueiro, onde só hospedava somente animais ilustres: o cavalo de estima de seu pai, o Bala-doce, a parelha de boi, Brasil e Maringá e uma “jeguinha” que era usada para trazer os “vasilhões” galões de leite, lá da casa de Geraldo Vaqueiro. Os sons se misturavam em uma melodia variada, o canto das figas que ficavam nos galhos comendo as sementes do Ficus, o relincho do cavalo bala-doce ou o canto de uma galinha no mangueiro, onde o menino saia correndo para procurar o ninho e voltava com a blusa cheia de ovos, e as canelinhas arranhadas e coçando cortadas pelo capim colonião, que media duas alturas do menino. Nesse mesmo tempo, já permeava o cheiro do café que vinha lá do fogão de fora, onde sua mãe, já punha o queijo cortado em cima da mesa da cozinha; o qual já estava faltando uma fatia, dado pela mãe, ou ligeiramente retirada por um menino levado.
7 O que a senhora disse? oi ... não entendi ...“inhá”
8 Começou a chover, mas parou.... iniciou
“Pispiô chover e parou logo”,
9 Antes
de ontem “Ontonte”
10 Não obsta. Que serve de obstáculo. / Opor-se,
contrariar, impedir. “Isso num ostra não
ta assim sem nuvem, mas pode formar
e chover mais tarde”